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SOBRE O PROJETO

O que nos traz Medeia de volta ao nosso tempo? Quais saberes esquecidos nos ligam a essa mulher e por que “dentre todas as heroínas trágicas, sua dor, sua cólera, seu pânico têm ecos tão atuais, atravessando os milênios que nos separam do mundo grego?” quais correspondências encontraríamos com a tragicidade presente em muitos acontecimentos do insólito cotidiano: a guerra e o descaso para com as sucessivas crises humanitárias, o êxodo forçado pela fome e pela miséria, o extermínio das populações vulneráveis, o racismo e a violência contra a mulher, a banalização do mal, o fascismo, a intolerância e a barbárie. Às margens com Medeia pretende responder a algumas destas questões.

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Poderíamos dizer que o embrião deste projeto iniciou-se há alguns anos ao deparar-me com a força de um mito/arquétipo feminino presente em muitos acontecimentos que emolduram a nossa época. Porém, foi a partir de 2015 com os encontros de trabalho com o grupo Multifacetados 1 sob a condução da atriz Ana Cristina Colla, professora da UNICAMP e atriz da Cia. Lume Teatro, que iniciei a retomada de um trabalho sobre processos composicionais para a cena, agora no âmbito do laboratório de artes cênicas da UERJ e junto ao coletivo de mulheres criado para essa montagem de Medéia. Este laboratório vem atuando sobre as diversas modalidades de treinamento para atorxs/performxrs/bailarinxs e se ancora num trabalho de investigação sobre dramaturgias do corpo que amplia qualidades de presença e investe em criações performativas de natureza interseccional onde diversas opressões como de gênero, raça e classe social possibilitam novas abordagens para um trabalho com as linguagens do teatro, da dança e da performance.

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Por que falar de Medeia em tempos de genocídio humano, de refugiados expatriados, de luta de classes, de corrupção endêmica nas relações entre capital e estado, do retorno de uma célula fascista que aponta para uma espécie de desintegração dos laços comunitários, sinalizando também o colapso de um(ou mais) modelo(s) civilizatório(s). Em que medida a dimensão trágica se instala em nossas poltronas a cada fim de noite e nos obriga a traçar diagnósticos e análises sobre esses tempos presentes, a refundar uma nova sensibilidade para a arte em que o estar “em comum” seja potente de ações e gestos que canalizem outros tipos de transformações pessoais e comunais. Medeia, uma das personagens mais extraordinárias do repertório trágico representa um ponto de partida para uma história que nunca termina de ser escrita; suas inúmeras releituras, desde aquelas do período clássico (ver a esse respeito as Medeas de Ovídio, de Sêneca dentre outras), quanto contemporâneas, como será o caso da Medea de Pasolini, da Medeamaterial de Heiner Müller, da Des-medeia de Denise Stoklos ou mesmo a versão de Paulo Pontes e Chico Buarque de Hollanda para o clássico Gota D´água, buscam de um modo ou de outro a reapresentação de arquétipos ligados ao feminino, explicitam o poder dos saberes ocultos e ancestrais, buscam ainda a reencenação de atos incorporados relacionados ao tabu e ao interdito. Nesta seara, o mito de Medeia também evoca o Outro civilizatório que representa aquilo que ficou esquecido e à margem, para que assim triunfasse a ordem do logos e do patriarcado, daí considerarmos esse projeto de uma urgência indiscutível.

 

Creio que fazer uma associação entre o passado mitológico de Medeia, mito feminino associado às paixões humanas mais avassaladoras, proporcionará ressonâncias com o aqui-agora, sobretudo em relação ao confronto diário com o cotidiano marcado por violentas manchetes de jornais: violência doméstica, feminicídio, transfeminicídio, racismo ambiental, fascismo e o projeto golpista e necrófilo que visa o genocídio das populações mais pobres, tudo isto embalado pela necessidade urgente de se postular um mundo senão novo, ao menos à altura dos grandes desafios de nossa humanidade no presente. Nos episódios cotidianos, o desatino e a cólera ganham as manchetes de jornais e há tempos nos perguntamos sobre a matriz que embala nossas sociedades, sempre amparadas por um pêndulo entre o que entendemos por civilização, natureza, cultura e barbárie.

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1) O grupo Multifacetados originou-se das oficinas conduzidas por Ana Cristina Colla que propiciaram a partilha sensível sobre alguns processos composicionais para a cena, sendo formado por atorxs/performxrs, pesquisadorxs e professorxs de teatro de diversas regiões do país.

© 2017 Fotos por Geoge Magaraia e Diana Magalhães

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